#01 cair das pernas, bancar as angústias e comer pães de queijo
porque hoje não tem nenhum casaco ameaçando me engolir
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024
estou bem. ufa, estou bem. coisa estranha de dizer após algumas semanas sentindo que caía das pernas. eu tinha uma melhor amiga na infância, a marcinha, que me dizia isso quando estava muito cansada: "amiga, estou caindo das pernas". lembrei dela no domingo, quando na falta de um nome apropriado para a angústia — nunca há um nome apropriado para a angústia — eu me vi dizendo que sentia que caía das pernas para dentro.
no domingo, com medo de desabar contra a minha vontade, quis desabar de propósito. desisti de balançar. na verdade, eu vinha desistindo faz um tempo, mas acho que a desistência não é uma decisão que acontece só no terreno da palavra. ela vem primeiro em pensamento, depois em discurso e depois ainda faz todo um caminho pelo corpo. há algumas semanas eu vinha sentindo, lá pelas 17h da tarde, após o expediente, uma espécie de casaco pesado sendo colocado sobre os meus ombros. o casaco chegava por trás e ia me abraçando e apertando e eu tinha a impressão de que, se eu não tomasse cuidado, ele me engoliria. a sensação ia e vinha. aí na última sexta-feira ela me chegou na garganta e eu passei o final de semana esperneando comigo e olhando o meu aplicativo de ciclo menstrual para confirmar que eu não estava perto de menstruar, mesmo. deus me livre de validar os meus sentimentos! eu sou uma piada.
eu sabia que não estava bem, mas a falta de nome, o vazio de sentido e o medo de sumir eram muito ameaçadores. e eu me distraía, sabe, porque as coisas não são tão absolutas, nem mesmo as ruins. a gente vai fantasiar em cima sobretudo das ruins, para que sejam suportáveis — e se dar permissão para fantasiar pode ser muito gostoso.
conversei com a nana e o alê sobre como em alguns momentos eu me sentia a própria esther greenwood sufocando na minha redoma de vidro¹, mas em outros eu estava no banheiro limpando o vaso sanitário e escutando california dreamin' com um sorriso no rosto, como se eu fosse a faye de um chungking express² paulistano. nenhuma das duas fantasias eram verdade, claro, mas também não eram mentira, percebi. se a verdade é ficção, a mentira também é, e a gente vai se sendo devagarzinho. no meio disso, posso fazer piada do meu romantismo prepotente.
bom. aí eu me dei conta, no meio da conversa com os dois, de que essa falta de nome tinha um nome. esse buraco de dentro era constitutivo e não iria ser entorpecido. a tal da angústia, que não mente, que se sustentada revela verdades invertidas do nosso desejo³, ou é mais ou menos isso o que diz a maria homem em um vídeo no youtube, onde ela conta que a gente se pergunta dos motivos da angústia porque supor uma utilidade para ela nos apazigua, faz com que a gente entenda que é inútil lutar contra. bonito, não? eu assino embaixo do que ela diz, porque sempre que eu vejo alguém dizendo que o sem-nome é a angústia, a angústia deixa de ser sem-nome para ser angústia e eu me sinto mais aliviada. ontem eu me senti aliviada, pelo menos. é importante dizer que eu percebi isso em diálogo, porque acho que um dos poucos jeitos de sustentar essa safada é dando espaço para ela transbordar no discurso. ou foi o que disse a nana e eu gosto das coisas que a nana diz. é bom ter amigos.
mas como entender nunca adianta de nada, eu me lembrei disso tudo, entendi muito que bem e comecei a ficar me perguntando qual que era o tal do desejo invertido que aquele peso no peito queria dar nome, ao invés de bancá-lo. fiquei tentando dar mais uma porra de um nome, esquecendo que a racionalização é sempre uma fuga. não à toa os terapeutas também precisam de terapia e os nutricionistas desenvolvem transtornos alimentares e os médicos cheiram cocaína no plantão, etc e tal. casa de ferreiro o espeto é de pau, né? então não deixei o casaco cair de uma vez. mas tudo bem, também. o alê disse que nem sempre dá para deixar o casaco cair de uma vez tendo responsabilidades e contas para pagar e — por que não admitir? — medo de como iremos fazer para nos levantar depois. ter medo é válido. nem tão ao céu e nem tão à terra, é bom saber variar entre criar coragem e se recolher. a gente sabe ser muito radical, quer perder todos os medos e traumas de uma vez, correr riscos para evoluir ou elaborar e sei lá mais o quê, mas acho bom lembrar de ter calma. a gente não precisa cutucar todas as feridas de uma vez. podemos ter medo.
no domingo eu dormi muito mal, dormi pensando sem parar. você já teve ansiedade noturna? eu fiquei toda grudenta, suada, acordei umas sete vezes com a boca seca e bebi água demais, então precisei acordar outras sete para mijar. na segunda de manhã eu estava com a cara inchada e querendo socar alguém. mas me dei uns minutos para cair das pernas — lembrei que cair das pernas é aos poucos — no banheiro do trabalho, dei uma choradinha, lavei o rosto e voltei a responder e-mails. e-mail malcriado aqui e ali, em casa dei outra desabadinha no banho, mas me recompus o bastante até a hora de dormir porque eu queria escrever. eu tenho escrito frases em muitos blocos de notas nos últimos dias, tentando fazer poesia dessa desordem, mas me frustrando, porque nenhuma primeira frase era a primeira frase certa. eu queria me antecipar, queria manter meu instagram de poesia funcionando, esquecendo que o tempo do poema não é o tempo do desejo. eu perdia os cabelos querendo dar nome a tudo à toa, porque o tudo já se escrevia em mim, está se escrevendo em mim. pensei isso e me acalmei um tanto, mas depois me desesperei de novo, tentando medir as palavras, sem saber como é que se mede as palavras. querendo cortar as palavras com facas cegas e servir no jantar. e se eu não escrevesse nunca mais? catastrofista. então disse para mim mesma parar de show e ir assistir outro episódio de avatar na netflix, porque o amanhã era outro dia e eu não precisava dar conta de tudo.
estranho muito a pergunta "tudo bem?" — como assim tudo? como assim bem? acho muito forte, muito definitivo. desconfio das coisas muito definitivas. mas como eu estive respirando mal há um tempo, com o peso de um elefante sobre o peito e uma vontade inexplicável de chorar, imagine como foi ontem quando, por volta das 14h da tarde, eu notei que estava diferente — que susto! chequei as narinas — funcionavam. chequei o peito — levíssimo. as pernas no lugar — nenhum sinal de que desabariam para qualquer direção.
nisso tudo, penso que sempre que estamos presos em alguma repetição — no meu caso, uma crise arrastada —, o primeiro degrau é perceber a repetição. e é verdade, o próximo degrau é bem mais alto. mas perceber é o primeiro degrauzinho e a gente despreza os primeiros degrauzinhos. por isso mesmo não saímos do lugar, eu acho.
hoje eu acordei meio esquisita de novo, porque estar bem não é linear ou por inteiro, mas comi um pão de queijo e li um poema bonito, então acho que o pior já passou. atrevo-me até a autorizar que ele venha e vá de novo, também, se de vez em quando eu puder comer outros pães de queijo e ler outros poemas bonitos. o que eu sei que posso.
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¹ Referência ao livro “A Redoma de Vidro”, de Sylvia Plath (porque foi o último livro que li e me fez chorar)
² Referência ao filme “Chungking Express”, de Wong Kar-Wai (porque foi o último filme que vi e me fez rir)
³ Referência ao vídeo “A Importância da Angústia”, da psicanalista Maria Homem no canal da Casa do Saber (porque foi o último vídeo que assisti e me fez querer escrever)
Indicações extras:
‣ Música: “A Balada de Tim Bernardes”, de Tim Bernardes (o alê me indicou tem uns dias e ontem escutei na janela do ônibus, bem emocionada, pensando nas falácias do se tornar adulto e em como a gente pode ficar feliz mesmo depois — ou até mesmo no enquanto — de um momento difícil)
‣ Podcast: “Sambudismo”, do Elefantes na Neblina (a bia do @bgvls indicou esse trio de malucos tem umas semanas e nesse em específico eu dei umas lacrimejadas — eu to muito chorona!!1 — pensando na felicidade, nos amigos e nos desejos)